É possível produzir alimentos no bioma desde que se adotem certas práticas, como o aproveitamento absoluto das águas e o manejo adequado do solo. Entenda as evidências sobre o tema.
Se a agropecuária é possível em ecossistemas áridos ao redor do mundo, como os desertos de Israel, por que não seria viável na Caatinga?
O segredo está em seis pilares fundamentais: (1) aproveitamento absoluto da água proveniente das chuvas escassas; (2) manejo adequado dos solos, conservando sua cobertura vegetal; (3) proteção integral dos ecossistemas próximos aos cultivos, incluindo sua biodiversidade; (4) diversidade e rotação de culturas; (5) adoção de práticas agrícolas de sequeiro e irrigadas; e (6) interação lavoura-pecuária, priorizando o gado produtivo ao rústico.
A produção se inicia em solos conservados capazes de armazenar água e fornecer nutrientes e é complementada por serviços fornecidos pelo entorno preservado, como polinização e controle de pragas. Diferentes culturas anuais ou perenes devem ser plantadas em sistema de rodízio, com ou sem irrigação, seja para alimentação humana ou animal. Após a colheita, o gado pasta sobre os cultivos, integrando lavoura e pecuária.
1. De onde vem a água para a produção agrícola na Caatinga?
Seja para a agricultura de sequeiro, aquela implementada durante o período chuvoso, ou a irrigada, a água usada para produção na Caatinga depende das poucas chuvas da região. Portanto, o sucesso da agricultura local depende da otimização do uso das chuvas e da proteção do solo, que pode funcionar como uma esponja de absorção dessa água. Parte dela alimenta aquíferos que recarregam açudes, represas e outros reservatórios superficiais, além de poços e cisternas subterrâneas. Mesmo com esses reservatórios, o manejo e a conservação do solo são essenciais para o uso eficiente da água na agricultura.
Assim como em outros ecossistemas, a produção sustentável na Caatinga tem que ser delineada em escala de paisagem, considerando tanto as áreas produtivas quanto as áreas destinadas à conservação, essenciais para a captação de água e para outros serviços ecossistêmicos de interesse agrícola. Um estudo recente 1 demonstrou que paisagens com 50% de cobertura vegetal e 50% de terras agrícolas bem manejadas acumulam crescentemente umidade no solo e produção de alimentos.
2. Como manejar corretamente o solo dos cultivos?
O solo das áreas produtivas da Caatinga precisa ser manejado com muita atenção. Um dos maiores segredos desse manejo, que surpreende pela simplicidade, é a manutenção da sua cobertura. Essa prática é essencial para evitar que o solo perca água por evaporação e os cultivos desidratem. Em culturas irrigadas, como as frutíferas, a cobertura pode ser da vegetação herbácea natural que cresce entre as plantas cultivadas, e o coroamento convencional ou mesmo o sombreamento das plantas adultas acaba impedindo a competição dos cultivos com as ervas. No caso de culturas de sequeiro, o plantio direto em solos protegidos com cobertura morta ou a prática de rotação de culturas possibilita a manutenção de matéria orgânica, que atua como agregadora de água no solo.
Muitos solos da Caatinga são ricos em nutrientes, mas podem ser comprometidos por causa de erosão, salinização ou práticas que utilizam fogo. É importante ressaltar que o solo é o ventre da produção agrícola, e a água é o alimento necessário para seu desenvolvimento. Cuidar do ventre é tão importante quanto cuidar do alimento.
3. Por que conservar e restaurar o ecossistema natural do entorno das áreas produtivas?
A dicotomia entre produção agrícola e conservação está ficando cada vez mais no passado. A agropecuária moderna precisa dos serviços fornecidos pelo ecossistema natural que circunda as áreas produtivas. Essa dependência se manifesta na água utilizada para produção, que é captada pelo ecossistema natural, e nos serviços de polinização e controle de pragas fornecidos contínua e gratuitamente pela biodiversidade do entorno.
Abelhas polinizam os cultivos, enquanto aves, morcegos e outros animais insetívoros consomem as pragas que os atacam. Um exemplo prático mostra que as abelhas aumentam 150% da produção de frutos em plantios comerciais de goiabeiras na Caatinga 2.
Com o desmatamento em regiões de terras secas, os solos se tornam impermeáveis, os aquíferos secam, a biodiversidade é eliminada, as doenças e pragas proliferam, a produção se inviabiliza economicamente e a pobreza aumenta 3. Com a restauração do ecossistema, percorre-se o caminho inverso. Assim, conservar o que existe e restaurar o que foi degradado é essencial para a produção na região.
4. Qual é a importância da diversidade e da rotação de culturas?
A agricultura em regiões semiáridas implementa a integração e a rotação de culturas há muito tempo. A diversificação e a rotação de culturas, junto com a manutenção dos ecossistemas naturais do entorno, são responsáveis pela redução na incidência de doenças e pragas e, principalmente, pela manutenção de matéria orgânica diversa no solo 4. Essa matéria orgânica assegura o funcionamento do solo por meio da fixação de moléculas de água e da manutenção de condições para as atividades biológicas.
A diversificação e rotação de culturas deve ser aplicada para culturas anuais, como legumes e hortaliças ou para plantas forrageiras, que também servem de alimento para o gado, como sorgo, milho e feijão. A diversificação também deve ser implementada na produção de culturas perenes, como goiaba, umbu, manga e demais frutíferas. Do ponto de vista econômico, as técnicas de diversificação e rotação de culturas aumentam as chances de comercialização dos produtos e protegem os produtores.
5. Produção em sequeiro e irrigada: é possível combiná-las?
O plantio em sequeiro é utilizado em regiões áridas e semiáridas e pode ser combinado com cultivos irrigados, muito mais comuns em todo o mundo. A agricultura de sequeiro é muito dependente das chuvas ou das margens de reservatórios quando estão secando — o chamado plantio de vazante. Seu maior benefício é não exigir o abastecimento de água artificial, o que significa redução de custos com irrigação.
Já a produção irrigada deve contemplar inicialmente o tipo de aquífero disponível na propriedade. Imóveis rurais que contam apenas com reservatórios com grande lâmina d’água precisam utilizar a água rapidamente para minimizar perdas com evaporação, priorizando as culturas anuais, também chamadas de ciclo curto. Já imóveis que contam com poços artesianos ou reservatórios, em que é possível utilizar água ao longo do ano, podem diversificar a produção com culturas perenes. Qualquer que seja a estratégia, a irrigação deve garantir o aproveitamento absoluto da água disponível.
6. Por que fomentar a interação lavoura-pecuária?
A interação lavoura-pecuária adiciona um componente de reciclagem no sistema de produção. Além de fornecer alimento para o gado por meio do pastejo direto após a colheita, a prática permite a adubação de baixo custo do solo com urina e esterco. No ciclo da próxima cultura, o solo será beneficiado com nitrogênio e matéria orgânica. Nesse sistema, a compactação gerada pelos animais não é um problema sério, pois o solo acaba sendo revolvido mecanicamente antes do plantio.
A qualidade do gado a interagir com o cultivo também é crucial. Na Caatinga, recomenda-se a criação de animais de menor porte — que consomem menores quantidades de biomassa por dia, mas que produzem proporcionalmente o mesmo que animais de maior porte. Um exemplo é o das pequenas vacas leiteiras mestiças Jersey x Holandês, que mantêm uma alta produtividade de leite por unidade de área, criadas no sistema de interação lavoura-pecuária no Cariri paraibano. É preciso também eliminar o mito de que gado bom é gado rústico, principalmente se ele for pouco produtivo.
BIBLIOGRAFIA
Araujo, H.F.P., Machado, C.C., Pareyn, F.C., Nascimento, N.F, Araújo, L.D.A., Borges, L.A.A., Santos, B.A., Beirigo, R.M., Vasconcellos, A., Dias, B.O., Alvarado, F., Silva, J.M.C., 2021. A sustainable agricultural landscape model for tropical drylands. Land Use Policy, v. 100, 104913.
Baumhardt, R.L., Anderson, R.L., 2006. Crop Choices and Rotation Principles. In: Agronomy Monograph, Dryland Agriculture. American Society of Agronomy, Crop Science Society of America, Soil Science Society of America, pp. 141–194.
Fonte: NEXOS POLÍTICAS PÚBLICAS
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